A medicina e os prazos

- A existência de determinada patologia pode levar até ao câncer. Comentava o médico mais experiente, arregalando seus grandes olhos azuis ao encarar “seriamente” a câmera enquanto era entrevistado pelo repórter.

(...)

Quantos de vocês já ouviram essa bendita frase?

Então é isso, o câncer é o trem desgovernado rumo ao fim da linha? O último ponto final do livro da história da sua vida, justamente quando você estava a narrar o capítulo mais importante e feliz?

Câncer: O apito do juiz determinando o término do jogo, exatamente na hora em que você – o melhor artilheiro do time- está prestes a marcar o gol mais bonito da sua carreira...

Quanta papagaiada...

É por isso que até hoje algumas pessoas ainda sofrem e lamentam a minha – e a sua- doença. Por que pessoas que julgam o câncer dessa forma, se atrevem a expressar a sua opinião em um veículo público e aberto a sociedade. E é exatamente nessa hora em que os vagões do nosso emocional saem desgovernados dos nossos trilhos, atropelando quem está a nossa frente com o coração repleto de esperanças e bons fluidos. É nessa hora que o medo chega.

Não tiro a seriedade do assunto, mas apontar o câncer de forma tão ameaçadora me lembra a infância, quando ao não fazer a vontade do irmão mais velho, a gente escutava:

- Se você não me ajudar com isso, vou contar que foi você quem quebrou o vaso de porcelana favorito da mamãe.

Ai meu Deus, a mamãe!! O vaso favorito da mamãe!! Ela vai me dar uma surra danada, ficarei de castigo por 5 anos. Pior, ela vai ficar tão chateada comigo que passará meses sem olhar na minha cara. Isso, ela vai me colocar para fora de casa... E provavelmente colocará outro filho em meu lugar.

É exatamente assim que algumas pessoas nos ameaçam diariamente com os novos estudos que apontam câncer. Desodorantes causam câncer, enxaguantes bocais causam câncer, mamografia causa câncer... E comer carne bem passada, também.

- Ai meu Deus! Desodorantes causam câncer!! Mas espera um pouquinho, é isso mesmo? Desodorantes? Mas uso desodorante desde adolescência... Mãe do céu, pelo amor de Deus marca um médico que meus dias estão contados!!!

E assim como no livro “Cartas para Julieta”, acredito que “"E" e "Se" são duas palavras tão inofensivas quanto qualquer palavra, mas se as colocarmos juntas lado a lado, elas contem o incrivel poder de nos assombrar pelo resto de nossas vidas. "E se".. E se? E se?

(E se) por acaso os médicos passassem a divulgar que o câncer também surge no organismo através de fatores internos? E se eles passassem a “pregar” a felicidade, divulgando que a tristeza e a tensão psicológica também são determinantes nas mudanças celulares?

(E se) nós, companheiras(os) de sobrevivência, passássemos a deixar o medo do inesperado ali no fundinho da gaveta?

E respondendo as perguntas do começo do texto: Não, o câncer não é o ponto final. O problema é que graças àqueles que não o tem, ele geralmente pode interpretado como.

E para mim, Evelin, que graças ao câncer passei a encarar a minha vida usando a abusando do “e se”, saber que eu o tenho é como descobrir que aquele vaso, o favorito da mamãe, era na verdade um presente da tia-avó do papai, Firmina, que ela não suportava, mas que o mantinha ali no centro da sala apenas para não deixar o papai chateado.